A rua derruba o armário. Arte e ativismo cultural no enfrentamento ao heterossexismo

A rua derruba o armário. Arte e ativismo cultural no enfrentamento ao heterossexismo
04. A rua derruba o armário. Arte e ativismo cultural no enfrentamento ao heterossexismo

Nós acreditamos que não há novidade alguma em dizer que alguém é homo, bi ou transexual à revelia de qualquer predeterminação. Afinal, a norma em algum momento falha e os sujeitos escapam. Sua eficácia é duvidosa. Mas nós podemos dizer que somos bichas, travas, sapatões ou queer pois ao sermos interpelados na posição de abjetos nos vimos diante de uma possibilidade: sermos assujeitados e/ou de ressignificarmos nossas vidas.

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E é aqui que nos situamos no trabalho de ativismo que se mistura à arte e a outras expressões e práticas minoritárias para a promoção de uma sociedade democrática e pluralista, marcada pela cultura radical da diversidade e pelos direitos humanos. Na disputa com as normas que se impõem e se fazem funcionar por meio do que se determinou como da ordem do gênero e da sexualidade que aprendemos a nos reconhecer como sujeitos, pelo menos este foi o dividendo (ou é ainda) do projeto da modernidade. Mas aprendemos também que uma boa maneira de ampliarmos nossa liberdade é pela via da invenção de nós mesmos. Algo que parece ser possível se recusarmos a naturalidade das linhas de inteligibilidade do humano decorrentes da normalidade.

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Entendemos que é através da arte que podemos enfrentar e combater as arbitrariedades que determinam as possibilidades que uns e outros podem ter para dizer, para ver, para saber, para habitar e inventar a cidade.

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Arte que sobrepuja o medo. Arte que produz tensões e cria e recria as desestabilizações que a diversidade humana provoca. Tentamos, ao nosso modo, estabelecer um diálogo em nossas práticas que representem as nossas inquietações e a de nossos pares. E para isso procuramos o caminho da construção de uma intervenção ética, estética e política, que seja estridente e feita com ganas de estranhar as certezas. Este é também um diálogo na construção de políticas de respeito à diversidade humana, à multiplicidade cultural, como forma de descartar o embrutecimento das lutas políticas tradicionais. A arte é nosso esteio. Maculada por uma virada lingüística que tenta resistir às formas de dominação e domesticação.

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Tentamos com nosso trabalho combater a banalização da vida humilhada pelos imperialismos morais e estéticos que fazem com que neste país e na América Latina (entre tantas e tantas outras formas de humilhação, de exploração, violências silenciosas, violências estridentes) mingúe-se a nossa criatividade, a nossa potência em fazer da vida uma obra de arte (FOUCAULT, 1984). Este é o nosso jeito de fazer política, de ocupar a cidade e de garantir o direito de sermos humanos e não de sermos humanizados.

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Ao falarmos dos modos como os dispositivos da sexualidade e do gênero têm servido como forma de nos localizar e esquadrinhar, especialmente, com uma linguagem insurgida da injúria e da desqualificação, nós queremos apontar para a cegueira institucionalizada diante das diversas formas de exclusão e das violências que produzem marcas nos corpos e feridas nas subjetividades. Denunciamos as vidas negligenciadas pela moralidade (hetero) normativa na saúde pública, na educação, na segurança e na cultura. Falamos alto contra a cegueira que joga à clandestinidade àquelas e a aqueles que buscam fazer de seu corpo um corpo mais belo e prazeroso, exuberante, feito para si e para os outros (falamos aqui, por exemplos, das travestis e transexuais que querem ser vistas, contempladas… Afinal, o que mais pode querer um artista com sua obra?). Denunciamos a covardia que acaba criando as prisões ao céu aberto e sitiando – gente que só pode existir à noite.

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Efeito do heterossexismo, enfrentar a homofobia é nosso penhor. Mas com irreverência, ludicidade e inventividade. Assim, valemo-nos da linguagem que nos desqualifica para combater a própria covardia que se embala nas expressões da injúria que hierarquiza vidas. E isso nos parece, concordando com Judith Butler (2005), que é desde as zonas e posições de abjeção que temos também a possibilidade de uma (re) forma e novos contornos do sujeito e da sociedade, por meio de uma invenção estética – para o corpo e para a cidade.

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A sexualidade corresponde a uma experiência que foi historicamente regulada por práticas e saberes que fizeram com que as pessoas acabassem por se reconhecer por meio dela e, neste sentido, cada vez mais fomos incitados, convocados a falar sobre “nosso sexo” (FOUCAULT, 1977). Mas não no sentido de algo que reconhecesse a nossa capacidade de criação e de prazer. Ela foi desde a modernidade algo que funcionou no sentido de nos marcar, de nos destinar, inventariar e de nos definir – como tipos dóceis e úteis.

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E se a vida (em sociedade) é uma construção inacabável, acreditamos que compreender as possibilidades e a diversidade de viver a sexualidade seria menos atormentador se pudéssemos pensá-la na riqueza de suas manifestações; como possibilidade de perseguirmos uma vida mais criativa e menos individualista. Assim talvez possamos recusar mais prontamente o lugar comum, o facilmente apreensível, o previsível, o “desejável”, o controlável e o que nos congela e paralisa frente ao terror dos fascismos.

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Acreditamos que a experiência de trabalho que lança mão da arte minoritária, da arte sem “compromisso”, da arte popular, da arte vulgar, permite questionar e intervir ao mesmo tempo sobre as formas de compreensão da sexualidade e dos modos de vida, construindo outras maneiras de dar legitimidade a elas.

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Ocupar as ruas e contar histórias negligenciadas, silenciadas, são expressões emblemáticas de atuação pública e de intervenção cultural. É através das artes plásticas, da literatura, do cinema-documental, do teatro, da performance entre tantas outras possibilidades de criação que procuramos uma experimentação política para a transformação social no compromisso com a vida, não no sentido de sua administração.

“Sair do armário” pode ser bem o gesto pelo qual nos livramos de certo estado de não liberdade, mas isto não nos permite escapar à empresa do poder para se instalar em um lugar exterior a ele. É apenas e de outra forma a maneira pela qual se define um novo estado de relações de poder e se transformam a dinâmica das lutas pessoais e políticas (HALPERIN, 2000). Sair do armário, romper com a hegemonia do corpo e do prazer heterossexualizados e asfixiado pelas coleiras da normalidade (ERIBON,1999) é, pois, um ato de liberdade, não no sentido de uma liberação, mas de uma sorte de resistência e de uma certa virada de jogo.

Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los mímites materiales y discursivos del ´sexo´. Buenos Aires, Paidós, 2005.

ERIBON, Didier. Réflexions sur la question gay. Paris, Fayard, 1999.

FOUCAULT, Michel. (1984). Le souci de la vérité. In: Michel Foucault. Dits et écrits II, 1976-1988. Paris, Gallimard. (p.1487 – 1497).


. (1977). História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1988 – 12ª edição.

HALPERIN, David. Saint Foucault. Paris, EPEL, 2000.

(*) A rua derruba o armário. Arte e ativismo cultural no enfrentamento ao heterossexismo. Título da exposição organizada pelo nuances com fotos de Adriana Franciosi, retratos de participantes durante a Parada Livre de 2002/2003. Decido este texto a meus companheiros no nuances, (re) iventores de estranhamentos: Adriano Pinto, Célio Golin, Glademir Lorensi, Luis Gustavo Weiller e Perseu Pereira.

I O grupo Nuances foi fundado em 1991 em Porto Alegre, região sul do Brasil. A organização tem atuado no campo da promoção da cultura da diversidade sexual e dos direitos humanos através de projetos e ações em parcerias com outras organizações sociais e com o Estado; além de propor um amplo debate e contribuir decisivamente diante das transformações no contexto das leis anti-discriminatórias por orientação sexual.

Sobre eu Autor Fernando Pocahy Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante da coordenação política e de projetos do Nuances – grupo pela livre expressão sexual.



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