O bem-estar das crianças
Uma das principais resistências enfrentadas pelas famílias constituídas por pais homossexuais para uma maior aceitação social diz respeito à situação das crianças e à preocupação com o seu bem-estar. Essa dificuldade está, a meu ver, relacionada à maneira como se encara a homossexualidade, à compreensão que temos do que seja uma família, bem como à forma como se entrelaçam e se cruzam essas duas concepções.
As exaustivas revisões realizadas por Patterson e Stacey, Biblarz mostram que existem muitas pesquisas sobre famílias homoparentais sendo feitas desde 1975. A maioria dos trabalhos empíricos pertence à área da psicologia e trata da comparação entre o desenvolvimento psicossocial das crianças criadas por pais/mães homossexuais com aquelas criadas por pais/mães heterossexuais, buscando responder se haveria diferenças significativas entre os dois tipos de família: homossexuais e heterossexuais.
Os principais aspectos investigados dizem respeito à capacidade parental de pais/mães homossexuais relacionada à sua orientação sexual. Os relativos às crianças são: a) a saúde psíquica; b) a estabilidade emocional; c) a capacidade de adaptação ao meio; d) o relacionamento interpessoal; e) o enfrentamento do estigma; f) o desenvolvimento da identidade de gênero; g) a capacidade de diferenciação sexual; h) a orientação sexual.
O conjunto das pesquisas aponta em uma mesma direção e seus resultados deram suporte para manifestações oficiais de diversas entidades norte-americanas de profissionais das áreas da Psicologia, Antropologia, Psiquiatria, Pediatria, Serviço Social e Direito, a favor do casamento e adoção por homossexuais. Orientam, também, as decisões de alguns países como Espanha e Inglaterra, na liberação do casamento e adoção por homossexuais.
As pesquisas empíricas realizadas por diferentes autores indicam a inexistência de diferenças em relação à habilidade para o cuidado de filhos e à capacidade parental de pessoas heterossexuais e homossexuais, bem como demonstra não haver diferenças significativas entre o desenvolvimento de crianças criadas por famílias heterossexuais quando comparadas àquelas de famílias homossexuais.
Apesar disso, algumas dúvidas parecem recorrentes e é sempre necessário voltar a elas para tentar desfazer os possíveis equívocos.
A primeira delas é se as crianças teriam necessidade de um pai e uma mãe para desenvolverem adequadamente os aspectos importantes do seu psiquismo.
Os trabalhos mostram que o sexo dos pais/mães não é um fator importante para o bom desenvolvimento da criança, mas sim a qualidade da relação que os pais conseguem estabelecer com os filhos. A ausência de pais dos dois sexos não parece ter nenhuma incidência sobre o desenvolvimento da identidade sexual e o desenvolvimento psicológico geral das crianças, como demonstram os estudos feitos por Flaks et al.em 1995; Chan et al. em 1998; Brewaeys et al.em 1997, Kirkpatrick et al em 1981 e Golombok et al. em 1997 (in Stacey, Biblarz, 2001). Existem poucos estudos sobre casais de homens, mas pesquisas com pais celibatários parecem confirmar que o desenvolvimento de uma criança não fica comprometido pela ausência de mãe. As diferenças mais marcantes se encontram entre famílias biparentais e famílias monoparentais, independentemente do sexo dos pais, conforme o estudo de Golombok et al. de 2002.
O trabalho de Golombok et al. (1983) comparando os aspectos do desenvolvimento infantil das crianças indica não haver diferenças entre os filhos/as de mães lésbicas ou de heterossexuais em relação à identidade de gênero e comportamento de gênero. Não há evidência de identidade de gênero discordante da identidade de sexo entre os filhos/as de mães lésbicas. Bom relacionamento com os colegas foi observado em ambos os grupos. Problemas psiquiátricos entre as crianças eram incomuns em ambos os grupos mas proporcionalmente maior no grupo de mães heterossexuais sozinhas.
Huggins (1989) examina a construção psíquica do amor-próprio de adolescentes de mães lésbicas divorciadas e mães heterossexuais divorciadas, não encontrando diferenças significativas entre eles. Os achados são consistentes com outros estudos, cruzando diferentes variáveis, indicando que filhos/as de lésbicas e gays não têm um risco maior de problemas com ‘’…confusão na identidade sexual, comportamento de gênero inapropriado, psicopatologia ou orientação homossexual’’ (p. 124).
Outro engano frequente é a confusão entre identidade de gênero e sexualidade dos pais quando a pergunta é se nas famílias homoparentais um é o ‘’pai’’ e outro a ‘’mãe’’.
É preciso ter claro que um homem gay não se torna mulher por ter o seu desejo sexual orientado para um outro homem, assim como uma mulher lésbica não se torna homem pela mesma razão. Se pensarmos em termos de ‘’função parental’’ podemos dizer que a função “materna” ou “paterna” poderá ser desempenhada por qualquer dos parceiros, mesmo quando exercida de forma mais marcante por um ou outro dos membros do casal, sem que isso os transforme em mulher ou homem. Do ponto de vista da psicanálise, considera-se necessária a presença de um “terceiro” para a separação psíquica entre mãe e filho, uma das atribuições da chamada ‘’função paterna’’. Entretanto, nas discussões sobre famílias nas quais os pais são do mesmo sexo, há uma confusão entre o entendimento do que seja a função psíquica cumprida pelo ‘’terceiro’’ e a sua nomeação como ‘’paterna’’. Tanto nos casais gays quanto lésbicos, a função de “terceiro” pode ser exercida pelo parceiro/a do pai/mãe. Ao ser ele/ela o “objeto de desejo” do pai/mãe, introduz-se na fusão mãe-filho inicial, mostrando ao filho a existência de um “outro” desejado e, com isso, inaugura a alteridade. Para o filho, não importa o sexo da pessoa para a qual o desejo do pai/mãe está direcionado. O importante é a descoberta da existência de uma outra pessoa, que não ele/ela, por quem o pai/mãe sente desejo.
Da mesma forma, pais/mães homossexuais não recusam a existência dos dois sexos nem tampouco impedem as crianças de saber o que é um homem e uma mulher. As crianças de famílias homoparentais desenvolvem modelos de gênero semelhantes aos demais, não havendo uma influência maior relacionada à orientação sexual dos pais. Segundo as pesquisas, as crianças de mães lésbicas divorciadas mantêm um contato mais regular com seu pai biológico do que as crianças de mães divorciadas heterossexuais (Julien, Dubé, Gagnon, 1994). As mães lésbicas que fazem uso das novas tecnologias, nos casos de o doador ser anônimo, ou na ocorrência de adoção em contexto homoparental, na sua maioria, escolhem um homem (avô, tio, amigo) como padrinho da criança, o qual terá uma função particular junto a ela. Igualmente, os casais de homens que criam filhos dificilmente escapam da presença das mulheres no cotidiano, pois os trabalhos com a primeira infância são profundamente feminilizados.
A dúvida sobre se filhos/as de homossexuais têm mais tendência a serem também homossexuais é também recorrente e, embora a socialização dos filhos em ambientes homoparentais faça com que as crianças e adolescentes transitem melhor entre as diferentes possibilidades de relações afetivo-sexuais, posicionando- se de forma mais aberta quanto a essas diferenças, em relação a comportamentos, preferências e orientação sexual dos filhos, não existem diferenças significativas entre os adultos jovens, filhos de pais heterossexuais e os de pais/mães gays ou lésbicas. Filhos/as de mães lésbicas fazem mais referência à possibilidade de relações homossexuais sem, no entanto, se fixarem nesse tipo de relação.
No estudo de Bailey et al. (1995), mais de 90% dos filhos adultos de pais gays se consideravam heterossexuais. A orientação sexual dos filhos não está diretamente relacionada com a quantidade de tempo que viveram com seus pais. Os autores concluem não haver evidência disponível com base empírica para que haja impedimento da custódia da criança para pais gays e mães lésbicas, usando como justificativa os efeitos na orientação sexual dos filhos.
As adolescentes de mães lésbicas referem um repertório mais variado de relações sexuais, aderem mais a profissões ditas masculinas e se submetem menos às expectativas tradicionais de gênero (docilidade, delicadeza, vaidade etc.). Da mesma forma os meninos são menos agressivos que os de famílias heterossexuais, embora tenham comportamentos que se adaptam mais às expectativas de gênero do que as meninas. Porém, a taxa de homossexualidade é a mesma das famílias heterossexuais (Stacey, Biblarz, 2001).
O temor de que a orientação sexual dos filhos de homossexuais seja, também, homossexual, além de não encontrar suporte nos resultados das pesquisas, demonstra que essa questão é, em si mesma, preconceituosa.
As crianças informadas sobre a identidade gay, lésbica ou bissexual dos pais na infância ou no final da adolescência reagiram melhor do que as que foram informadas no início e no meio da adolescência. Os que foram informados ainda na infância apresentam uma auto-estima mais elevada do que os informados na adolescência (Patterson, 1996) . Os trabalhos sinalizam que a adolescência não é o melhor momento para a revelação de segredos pois nela surgem muitos pontos de tensão e rebeldia na relação com os pais.
Outra grande fantasia é de que pais/mães homossexuais ou seus amigos/as abusam dos filhos. Nenhum dos trabalhos revisados coloca o abuso dos filhos como uma característica das famílias homoparentais. Ao contrário, ressaltam que o risco de abuso pelos pais ou amigos destes é o mesmo das famílias heterossexuais (Paterson, 1996).
A maneira como as crianças vão lidar com o preconceito e a discriminação decorrente da homossexualidade dos pais vai depender de ela crescer em um ambiente familiar que trate com transparência as questões relacionadas às suas origens, e sem segredos sobre a relação dos pais. Ela poderá encontrar dificuldades, ou não, dependendo do olhar que a sociedade em que vive lançar sobre ela. Freqüentemente, o mais difícil de ser vivenciado é a estigmatização que a sociedade lança sobre as famílias ‘’diferentes’’.
Entretanto, embora a estigmatização das famílias gays e lésbicas possa trazer problemas para a relação da família com o mundo exterior, as famílias homoparentais desenvolvem mecanismos de enfrentamento, dentre eles a não-revelação da orientação sexual dos pais para além do grupo familiar. Da mesma forma que outros grupos minorizados, vítimas de preconceito, as crianças de famílias homoparentais aprendem quando combater, ou não, as discriminações e escolhem os amigos com quem vão compartilhar.
As críticas a esse conjunto de resultados é haver muitas dificuldades metodológicas que não são solucionadas em cada estudo. Entretanto, segundo Patterson (1996), não são os resultados isolados provenientes de tal ou tal estudo que serão significativos, mas o conjunto de elementos provenientes de diferentes estudos, possibilitando a elaboração de uma meta-análise.
É importante fazer uma crítica a esse conjunto das pesquisas, assinalando que a preocupação em comparar os efeitos sobre as crianças de famílias hetero ou de homossexuais prejudica o estudo das especificidades das famílias homoparentais (Stacey, Biblarz, 2001). De forma semelhante, De Singly e Descoutures (1999) chamam a atenção para o risco de se inverter o sinal, mantendo o preconceito, ao se tratar as famílias homoparentais como um modelo mais adequado de parentalidade do que o das famílias heterossexuais. Ambos os trabalhos sugerem a necessidade de pesquisas que saiam da comparação e abordem mais diretamente as situações próprias da homoparentalidade.
Bibliografía:
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DE SINGLY, François; DESCOUTURES, Virginie. La Vie em Famille Homoparental. Centre des recherches sur les Liens Sociaux CNRS- Université de Paris V, 1999. Disponível em: . [Acesso em: 07 jul. 2011] GOLOMBOK, Susan; TASKER, Fiona. Do parents influence the sexual orientation of their children? Findings from a longitudinal study of lesbian families. Developmental Psychology, v.32, n.1, 1996. p. 3-11. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2004.
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HUGGINS, S. L. (1989). A comparative study of self-esteem of adolescent children of divorced lesbian mothers and divorced heterosexual mothers. Journal of Homosexuality, 18 (1/2), 123-135.
JULIEN, Danielle; DUBÉ, Monique; GAGNON, Isabelle. Le développement des enfants de parents homosexuels comparé à celui des enfants de parents hétérosexuels. Revue Québécoise de Psychologie. vol. 15, n. 3, 1994. Disponível em: . [Acesso em: 28 set. 2004].
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STACEY, Judith; BIBLARZ, timothy J. (How) Does the sexual orientation of parents matter? In: American Sociological Review. Vol. 66, 2001.(pgs. 159 – 183) Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2004.
MUCKLOW, B. M., & PHELAN, G. K. (1979). Lesbian and traditional mothers’responses to Adult Response to Child Behavior and self-concept. Psychological Reports, 44, 880-88.
Sobre la autora:
Elizabeth Zambrano é médica psicanalista, mestre e doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora/supervisora do Centro de Estudos, Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência (CEAPIA) em Porto Alegre. Tem como foco dos seus estudos as questões envolvendo homossexualidade, travestilidade e transexualidade. Trabalha as interfaces entre Antropologia, Psicanálise e Direitos Humanos.