Subversão e institucionalização na produção artística brasileira das últimas décadas

Subversão e institucionalização na produção artística brasileira das últimas décadas

Os anos 70 se iniciaram, no Brasil, com a interrupção radical de um dos períodos mais efervescentes da cultura brasileira: em dezembro de 1969 foi promulgado o Ato Institucional número 5, que instituiu a censura e deu poderes extraordinários ao executivo e ao exército para coibir ações que julgassem subversivas, principalmente as ligadas ao comunismo, instituindo a censura e um período de terror no campo da política. Interrompeu-se, por exemplo, a criativa trajetória do Cinema Novo que, iniciado nos anos 50, e partindo da premissa de que a linguagem é um dos lugares onde se instaura e se reproduz o poder, esperava, ao recusar padrão de Hollywood, contribuir para a “desalienação” da população.

No Brasil, a história da arte, pelo menos neste século, quase que se confunde com a dos movimentos políticos. A explicação para isso está nas características da nossa formação cultural. É claro que aqui também se critica o isolamento da arte numa produção pouco acessível ao grande público, mas, no geral, isso não impede que os artistas sejam orientados por preocupações sociais, que almejem instigar mudanças e que se pretendam próximos ou inspirados pela cultura popular. Maria Isaura Pereira Queiroz escreveu uma tese bastante assentada entre os intelectuais brasileiros segundo a qual, entre nós, a identidade cultural e a identidade nacional se confundem (Queiroz, 1989).

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Na Europa, a unidade ideológica das nações foi buscada de maneira diferente: a resposta ao desafio da integridade frente ao que era externo aos países é diferente daquela que preside as relações internas entre grupos diferentes que compartilham um mesmo território, ou seja, forte apego a uma identidade cultural não é sinônimo de nacionalismo. A solução brasileira, ao contrário, foi única para as duas situações. Isso porque a dificuldade em estabelecer as fronteiras brasileiras não foi tão intensa como lá. Nosso problema era outro.

O Brasil era um miscelânea de culturas e precisávamos descobrir o que nos fazia únicos, o que nos caracterizava enquanto povo, o que compartilhávamos. A solução inicial adotada no final do século XIX foi a do branqueamento. A proposta de vários intelectuais e a ação governamental era orientada no sentido de tornar hegemônica a tradição européia. Desde a Semana de Arte Moderna de 1922, no entanto, que se trata a diversidade cultural como positiva e que muitos artistas procuram evidenciar influências múltiplas, especialmente as contribuições das culturas negra e indígena e européia. Uma vez tornada comum a associação entre identidade cultural e nacionalismo, as disputas sobre o que compreende nossa característica ou herança cultural, ficaram necessariamente carregadas de sentido político.

Dentro desse quadro, a diferença entre o ativismo cultural e outras formas de manifestação artística, ficam um pouco tênues. A Bossa Nova, por exemplo, foi marcada por uma cisão. Já em meados dos anos 60, compositores como Francis Hime e Edu Lobo, descontentes com a excessiva influência do jazz na música brasileira, buscaram uma aproximação maior com o samba do morro, aquele mais típico das populações negras e excluídas do Rio de Janeiro. Por outro lado, há quem coloque toda a Bossa Nova no mesmo patamar, criticando-a como “trilha sonora da ditadura”. Na seqüência da Bossa Nova veio a chamada MPB, ou Música Popular Brasileira, que se consolidou nos grandes festivais dos anos 70. Um dos seus maiores nomes foi Chico Buarque, cujas composições foram o fundo musical do Movimento Pelas Diretas Já, em 1984, quando, nos estertores da ditadura, suas canções de protesto foram entoadas por milhares de pessoas em praça pública exigindo o voto direto pra Presidente da República.

No fim dos anos 80 começa a ser articulada o que representou, talvez, a maior alteração na produção cultural brasileira nessas décadas, e que ganhou forma definitiva em 1991: a Lei Rouanet. O Estado, na verdade, estava quebrado e órgãos históricos como o Funarte, que atuava na preservação do folclore, estavam praticamente sem fundos. Essa lei injetou verbas no campo cultural ao permitir que projetos aprovados pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura recebessem patrocínio de empresas e pessoas, que seriam futuramente abatidas parcialmente do imposto de renda devido. Com essa mudança, a artes ficaram muito mais dependentes do incentivo privado. Paralelo a esse movimento, houve uma reação às exposições montadas para um número restrito de visitantes.

Pela primeira vez no Brasil, mostras de artes plásticas foram planejadas para grandes públicos, incluindo aí a oferta de transporte e recepção para crianças de escolas públicas. Milhares de pessoas passaram a freqüentar nossos principais museus. Por um lado, isso representou uma perda, pois tudo passou a ser calculado em função do número de visitantes que se conseguia atraír, ou seja, em função dos sinais mais banais e insuficientes de sucesso. Por outro, surgiram possibilidades novas de criação, de acervos e de educação pública. Um grande exemplo é o Museu Afro-Brasil, fundado em 2004 e que é uma grande conquista no sentido de resgatar a auto-estima e valorizar a contribuição do negro na formação cultural do Brasil.

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Um outro produto desses novos tempos é o decreto de 2000 que permite a salvaguarda de bens culturais de natureza imaterial. Um dos primeiros bens tombados foi o ofício das paneleiras em Goiabeiras Velha, no Estado do Espírito Santo, em 2002. O que efetivamente o tombamento garantiu foi muito mais do que a preservação de uma técnica, foi a sobrevivência de um grupo, na medida em que assegurou também as condições necessárias ao seu trabalho, a preservação e o acesso à matéria prima no qual a técnica tombada é aplicada. A população pobre que vive desse produto, está, assim, melhor amparada. Essa situação fez surgir um novo tipo de militância política, aquela volta para a atuação no campo da cultura e cujo objetivo pode ser a inclusão de uma prática cultural no livro do tombo de bens imateriais.

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Algumas manifestações, entretanto, continuam desafiando a possibilidade de serem incorporadas pela burocracia estatal. O movimento Funk é exemplar nesse sentido. Ao contrário do que frequentemente se veiculou na mídia, algumas letras têm um conteúdo altamente politizado, com destaque para as relações de gênero. O Funk do Pantro, de UDR, por exemplo, canta: “Vai, Pantro, balança essa bundinha, / Se você for mais esperto vai dar de camisinha”.

Em resumo, um dos pontos a partir dos quais podemos englobar boa parte do que aconteceu nas últimas décadas no campo da cultura, foi a transição entre uma produção engajada, gestada ou inspirada na cultura popular, com forte conteúdo político, na medida em que colocava em pauta a identidade nacional e com isso a legitimidade da representação, para uma situação nova, de intensa interferência do setor privado e de proliferação de instituições e conselhos. Novas formas de engajamento político surgiram, bem como de subversão, que se expressou, inicialmente, em movimentos como o Funk.

Bibliografía

QUEIROZ, Maria Isaura. “Identidade cultural, identidade nacional no Brasil.” Tempo Social, Rev. Sociologia USP, São Paulo, 1(1): 24-46, 1. sem. 1989.

RIDENTI, Marcelo; Em busca do povo brasileiro; Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 2000.

ORTIZ, Renato; “As ciências sociais e a cultura”, Tempo Social; Rev. Sociologia, USP, 14(1): 19-32, maio de 2002.

Sobre el autor

Caleb Faria Alves

Doutor pela Universidade Federal de São Paulo, é, atualmente, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde coordena estudos na campo da antropologia da arte.

calebfa@uol.com.br



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