Travestis, prostituição, política e direitos: uma nota etnográfica
Nos últimos anos, a sociedade brasileira tem experimentado uma convivência cada vez mais cotidiana com as travestis. Elas tem aparecido como personagens nas telenovelas, como atores políticos importantes no cenário dos direitos humanos e da saúde, como objeto de estudo de várias disciplinas acadêmicas, como cidadãs que convivem em nossos bairros e comunidades, e mesmo como candidatas a cargos eletivos em diversos municípios do país. De fato, as travestis já dispõem, tanto na sociedade brasileira quanto América Latina como um todo, de organizações e redes sociais que lutam pela garantia de seus direitos e pela expressão de suas performances de gênero como legítimas e possíveis. A crescente visibilidade alcançada pelas travestis, seja por mérito de seus esforços de organização política, seja pela influência de algumas políticas públicas inclusivas, ou ainda pelo destaque que estes grupo tem merecido no âmbito das investigações em ciências humanas, tem proporcionado a emergência de novos sentidos e práticas relativas à travestilidade.
Entretanto, apesar destas mudanças evidentes nos significados culturais relativos às práticas de transformação dos corpos e do gênero das travestis, ainda persiste a idéia de que elas ingressam nestes processos motivadas apenas pela prostituição e pelos ganhos financeiros que esta atividade pode proporcionar. No senso comum dos meios de comunicação de massa e das instituições, ainda perdura a noção de que pessoas nascidas homens engajam-se em processos complexos de transformação de seus corpos, subjetividades e identidades sociais, com o propósito principal de explorarem o mercado sexual.
Esta breve reflexão busca colocar em perspectiva a noção corrente de que a transformação corporal e de gênero levada a cabo pelas travestis tem por base o ingresso no mercado sexual. Ao explorar as mudanças recentes que tem sido observadas, por um lado, nas dinâmicas de organização política das travestis, e por outro nos processos associativistas em torno do trabalho sexual, procuro ressaltar as ambigüidades e resistências relativas a esta associação entre travestilidade e prostituição.
Meu objetivo nesta breve reflexão é argumentar que os processos de construção do corpo e do gênero das travestis são complexos e estão determinados e estruturados por lógicas do gênero próprias deste grupo social. Também pretendo argumentar em favor de uma compreensão acerca dos ambientes de prostituição de travestis para que estes espaços sejam percebidos não apenas como um lugar de trabalho e de procura de dinheiro por parte das travestis, mas sim como um dos principais espaços de sociabilidade e aprendizado dos processos de construção do corpo e do gênero das travestis, logo de construção de sua identidade social (Benedetti, 2005).
Os dados e informações aqui apresentados são resultado da minha experiência de convivência com as travestis nos últimos 13 anos. Inicialmente, em Porto Alegre, quando estive vinculado a um projeto de prevenção de HIV/Aids entre profissionais do sexo desenvolvido por uma ONG local e onde também realizei uma pesquisa etnográfica para elaboração da minha dissertação de mestrado em Antropologia Social. Mais recentemente, entre 2006 e 2008, ocupei o posto de assessor técnico junto ao Programa Nacional de AIDS do Ministério da Saúde do Brasil, onde tive a oportunidade de conviver com as diversas organizações e associações de travestis em todo o Brasil. Neste mesmo posto, pude conviver com o movimento social organizado de trabalhadoras sexuais, com o qual o movimento social organizado de travestis estabelece relações de aproximação e de tensão. Neste último período, participei de uma série de encontros, reuniões e consultas, organizadas tanto pela sociedade civil quanto pelos governos, que tematizaram os assuntos da travestilidade e do trabalho sexual, como é o caso do ENTLAIDS (Encontro Nacional de Travestis e Transexuais que Lutam contra a AIDS), o principal fórum de debate e articulação entre as associações de travestis no Brasil.
Este breve artigo busca oferecer uma primeira reflexão sobre as relações entre o movimento social organizado de travestis e o movimento social organizado de profissionais do sexo, por um lado, e das relações entre o movimento social organizado de travestis e as dinâmicas e políticas públicas relativas à prostituição e trabalho sexual, por outro. Sem a pretensão de esgotar o assunto, este artigo almeja apenas trazer à tona alguns elementos para análise que podem colaborar para uma compreensão mais aprofundada da relação entre travestilidade e mercado sexual.
Prostituição e travestis – novos babados e possíveis dinâmicas
Como já discuti em artigo anterior (Benedetti, 2004), as relações entre travestilidade e os espaços e práticas de prostituição podem ser consideradas como elementos constitutivos das identidades sociais de travestis. Mais do que um lugar profissional ou de sobrevivência, os espaços de prostituição constituem importantes cenários de sociabilidade e aprendizado do gênero para as travestis no Brasil. Neste sentido, a argumentação de que a “causa” da travestilidade seria o acesso ao mercado de prostituição não se sustenta. Quero argumentar que os discursos que explicam a construção do corpo e do gênero das travestis pelo interesse nos rendimentos financeiros proporcionados pela prostituição constituem um dos sustentáculos do estigma e da exclusão social que cerca este grupo social e devem, portanto, ser combatidos e questionados.
Nos territórios de batalha 1, as travestis aprendem e compartilham sentidos sobre os modos de ser e de se tornar uma travesti. As formas e contornos do corpo, as performances do gênero e do feminino, as modalidades de conjugalidade e relações afetiva, o ethos da vida na noite, as dinâmicas da sexualidade e do prazer; as violências e suas linguagens, as drogas e seus prazeres, os valores em torno da moda e dos desejos de consumo : todos estes elementos e processos são experimentados e vividos nos espaços de prostituição de travestis. Estes territórios, muitas vezes públicos e exclusivos de travestis, estão estruturados em uma organização espacial e simbólica que revela as lógicas do gênero que dão sentido aos corpos às identidades das travestis.
Neste sentido, os territórios de prostituição públicos de prostituição são os principais espaços de sociabilidade entre travestis. É comum que travestis que não trabalham no mercado sexual freqüentem estes espaços na busca de parceiros sexuais e afetivos, amizades e onde consolidam suas redes sociais. Também é nestes territórios que encontram o espaço principal para o close , as performances, a exibição do corpo e do gênero, a experiência dos laços de parentesco que se criam e concretizam através da relação das mães e das filhas (Benedetti, 2005, Pelúcio, 2005). Enfim, os territórios e as práticas da prostituição constituem espaços e elementos importantes na vida cotidiana das travestis.
Recentemente, tem-se observado uma expansão importante das novas tecnologias de comunicação nos espaços do trabalho sexual: os anúncios via jornal ou internet; o uso do telefone celular; a distribuição de cartões de visita, o emprego de plataformas eletrônicas como MSN-Messenger ou Orkut. Novas práticas do mercado sexual também estão sendo incorporadas no repertório de atuação profissional das travestis. No Brasil, o mercado de filmes e revistas pornográficos é extenso e tem presença marcante no universo das travestis. Muitas recorrem a este meio para incrementar seus rendimentos ou para consolidar sua posição de destaque. Também as migrações temporárias ou permanentes para a Europa ou para os grandes centros urbanos do país são uma realidade mais freqüente para o conjunto das travestis no Brasil. Há ainda as agências especializadas em facilitar os contactos entre travestis e clientes, que tem se firmado no mercado como empregadores importantes das travestis.
Todos estes processos reconfiguram as relações entre as travestis; entre as travestis e os clientes; e entre as travestis e outros atores deste mercado; constituindo novas correlações de poder e prestígio. Também produzem diferentes sentidos para o ato da prostituição e do trabalho sexual entre as travestis. As travestis percebem a prostituição a partir de diferentes pontos de vista, muitas vezes antagônicos, ambíguos e mesmo sobrepostos. Segundo Larissa Pelúcio:
“A prostituição é entendida de diversas formas pelas travestis: [1] como uma atividade desprestigiosa, com a qual só se envolveriam por necessidade, saindo dela assim que possível; [2] como uma forma de ascender socialmente e ter conquistas materiais e simbólicas; [3] como um trabalho, sendo, portanto, geradora de renda e criadora de um ambiente de sociabilidade.” (Pelúcio, 2005:223).
Estas múltiplas percepções sobre o ato da prostituição também se refletem nos espaços de reivindicação de direitos e produção de políticas públicas para este grupo. Esta diversidade de sentidos se faz presente no interior dos movimentos sociais organizados de travestis, na sua interface com o governo e os tomadores de decisão e também na sua relação com outros movimentos sociais, em âmbito nacional e internacional.
O movimento social de travestis – entre closes, ambigüidades e tensões
No Brasil, a organização de um movimento social específico das travestis já tem uma história. A epidemia de AIDS foi com certeza um impulsionador importante para este processo (Klein, 1996) e atualmente existem associações de travestis em todos os estados da federação. Mesmo em algumas cidades de pequeno porte, no interior do pais, é possível encontrarmos associações de travestis atuantes que mantêm interface com outros movimentos sociais e com os poderes públicos locais e nacionais. (Peres, 2005)
Tendo como foco principal a garantia dos direitos humanos deste grupo, a questão do trabalho sexual ocupa um lugar importante entre as “bandeiras” de luta destes grupos. Contudo, os sentidos imprimidos a esta prática não são uniformes no interior do movimento e muitas vezes originam tensionamentos e ambigüidades que aparecem de maneira explícita nos encontros e nos documentos deste movimento.
O principal evento de articulação e deliberação política do movimento social organizado das travestis é o ENTLAIDS. Nestes encontros, a prostituição e o trabalho sexual estão presentes e constituem pautas de discussão, além de interagir com diversos conjuntos de reivindicações: o acesso ao mercado de trabalho formal; o acesso e as especificidades de saúde do grupo; as situações de violência e exploração; o acesso à educação; as questões de migração e tráfico de pessoas.
Todavia, o movimento não tem uma posição política clara e consolidada em relação a estes assuntos e o tema da prostituição é sempre debatido de forma candente, provocando tensionamentos e ambigüidades. Os diferentes pontos de vista das travestis sobre a prostituição (Pelúcio, 2005) reproduzem-se no âmbito do movimento social e aparecem refletidos em suas posições e documentos.
Nacional e internacionalmente, há um conjunto de temas que cercam os debates públicos sobre a prática da prostituição. Nesta reflexão destaco três destes temas e as apropriações que são feitas no âmbito do movimento social organizado de travestis. Os temas são: o reconhecimento legal da profissão ; a exploração sexual de menores e prostituição infantil; o tráfico de pessoas e suas sobreposições com os processos migratórios.
O reconhecimento da prostituição como uma profissão é um tema importante de discussão e luta do movimento social organizado de profissionais do sexo. Esta, contudo, é uma questão deveras sensível para o movimento de travestis. Não há consenso acerca da importância desta iniciativa e muitas travestis vêem este processo como um elemento inibidor do acesso ao mercado de trabalho formal. As posições acerca deste assunto são dúbias. Por um lado, há aquelas que acreditam que este processo é legítimo e organizam-se em suas associações para defenderem a questão perante os poderes públicos e a sociedade. Segundo este ponto de vista, cada pessoa deve ter o direito a exercer o trabalho que melhor lhe aprouver e, portanto, a prostituição deveria ser reconhecida como um trabalho para o gozo dos direitos sociais que ser-lhe-iam devidos. Por outro lado, há ativistas e associações que almejam um futuro onde as travestis não participem no mercado sexual, já que percebem a prostituição como degradante e moralmente reprovável. Estas últimas defendem a idéia de que, para pleitear uma condição de cidadania plena, é preciso desvincular a imagem das travestis com o mercado sexual e defender a profissionalização da prostituição seria, portanto, um contra-senso. As recomendações para ampliação do acesso ao mercado de trabalho formal emitidas nos ENTLAIDS espelham estas posições.
Os fenômenos da exploração sexual de menores e da prostituição infantil constituem temas de debate acalorados no âmbito do movimento social de travestis. As travestis militantes e as associações desaprovam qualquer prática de exploração sexual de menores e de prostituição infantil, trabalhando ativamente para desvincular as imagens das travestis e do movimento social destes fenômenos criminosos. Contudo, estas posições não levam em conta o fato de que a maior parte das travestis iniciam sua (trans)formação no período da adolescência, quando são legalmente menores. Nestes processos, os territórios da prostituição constituem espaços fundamentais de aprendizagem do gênero e incorporação do feminino, conforme já argumentei na seção anterior. Como os programas de combate a esta prática abarcam todas as pessoas que são legalmente menores, as travestis jovens também são alvo destas políticas. A força do estigma faz com que muitas travestis sejam expulsas de casa pela família ao iniciarem seus processos de (trans)formação corporal e do gênero. Estas, por sua vez, encontram no espaço da prostituição uma alternativa de existência legítima, de sobrevivência e sociabilidade. As ações de combate à exploração sexual de menores também dirigem-se às cafetinas, personagens ainda pouco estudadas e que têm papéis importantes no universo das travestis. As cafetinas em geral são travestis que mantém casas onde outras travestis habitam e que também muitas vezes exploram podem explorar o trabalho sexual delas, ao facilitar sua entrada ou oferecer segurança nos territórios de prostituição. As travestis adolescentes, muitas vezes, têm como único refúgio a casa de uma cafetina, que abriga-lhe, ensina-lhe os truques da profissão e colabora nos processos de (trans)formação corporal e do gênero.
A desaprovação da exploração sexual de menores no âmbito do movimento social organizado é um fato ambíguo porque, ao condenarem tais fenômenos, estão também a desaprovar as práticas que constituíram suas identidades de travestis no passado. Estas identidades, por sua vez, são o sustentáculo de suas identidades de sujeitos políticos que reivindicam seus direitos e que lhes legitima perante outros atores sociais. Nos discursos e posições do movimento, entretanto, não há uma relativização destas normativas legais e programas de combate ao fenômeno da exploração sexual de menores. Poucas são as travestis militantes que ousam, publicamente, a defender ou mesmo acusar uma cafetina. Também não se verifica discursos que sejam capazes de considerar as especificidades da sociabilidade das travestis e seu ingresso no mercado sexual. Esta subtilidade das diferenças entre a letra fria da lei e a dinamicidade da realidade social ainda não faz parte dos discursos das travestis militantes. Quero esclarecer que não defendo sob nenhuma hipótese a exploração sexual de menores. Porém, acredito que é preciso considerar as especificidades de cada universo para o julgamento do fenômeno e desenvolver políticas públicas que modifiquem o atual quadro de estigma e discriminação que atinge as travestis.
O esforço de combate ao tráfico internacional de seres humanos atinge fortemente o mercado sexual. Internacionalmente, verifica-se uma infinidade de programas e projetos que buscam coibir esta prática, voltados especialmente para as pessoas que se prostituem e que buscam o trabalho sexual em outros países como uma alternativa. Entre as travestis, o sonho de fazer a vida na Itália (Kulick, 1998) constitui um desejo importante e redunda em prestígio perante o grupo. É claro que existem redes organizadas para facilitar a entrada das travestis naquele e em outros países. Estas redes executam práticas condenáveis e criminosas, como exploração do trabalho sexual e extorsão. Novamente podemos perceber a ambigüidade do movimento social organizado em relação a este fenômeno. Ainda que as militantes apóiem, em seus discursos e documentos, as iniciativas governamentais de inibição destas práticas, são recorrentes as histórias de travestis militantes que abandonam a política em favor do trabalho sexual na Europa. Os discursos que propõem uma distinção entre tráfico internacional de pessoas e processos migratórios voluntários em busca de novos mercados para o trabalho sexual ainda são escassos no âmbito do movimento social. Além disso, muitas militantes e ativistas já fizeram parte deste circuito de vida na Europa. Logo, seu discurso perante as outras travestis torna-se inócuo e muitas vezes sem efeito. Embora as travestis ativistas condenem em seus discursos os esquemas criminosos de facilitação da viagem para a Europa, não se verificam, por parte do movimento, ações de denúncia para eliminação ou modificação desta prática e suas percepções pelos poderes públicos e agentes internacionais.
Notas finais
Ambigüidades são parte integrante do universo das travestis. Elas experimentam a ambigüidade no próprio corpo e nos seus processos de constituição como sujeitos sociais. A questão da prostituição é ainda polêmica e divide opiniões no interior do movimento social organizado de travestis, além de ser um tema gerador de tensões nas relações com outros movimentos sociais, especialmente com o movimento de profissionais do sexo.
Politicamente, a autodeterminação das travestis não tem foco no trabalho sexual, estando mais centrada na legitimidade dos processos de construção do feminino e do gênero. A luta pela garantia dos direitos humanos das travestis levada a cabo pelo movimento social organizado inclui ainda discretamente as questões relativas ao trabalho sexual, embora nos últimos anos tenham passado a ganhar certo destaque. Atualmente, vários são os processos políticos e sociais que aproximam cada vez mais o movimento organizado de travestis do tema da prostituição. Com sua ambigüidade e versatilidade, as travestis também darão conta desta questão, abalando!
Referências Bibliográficas
BENEDETTI, Marcos (2004). Entre a batalha e o corpo: breves reflexões sobre travestis e prostituição. Emwww.ciudadaniasexual.org/bol… . Consulta em 19/11/2004
BENEDETTI, Marcos (2005). Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond.
KLEIN, Charles (1996). AIDS, Activism and the Social Imagination in Brazil. Ph. D. Dissertation. University of Michigan.
KULICK, Don (1998). Travesti: sex, gender and culture among Brazilian transgendered prostitutes. Chicago and London: University of Chicago Press.
PELUCIO, Larissa (2005) Na noite nem todos os gatos são pardos. Em: Cadernos Pagu. Número 25, julho-dezembro 2005. p. 217-48
PERES, William (2005). Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Tese de Doutorado em Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Notas
(1) Forma êmica utilizada pelas travestis para designar o ato de se prostituir.
(2) Forma êmica empregada para significar alguma exibição ou superioridade, geralmente negativa e esnobe.
(3) Deste ponto decorre uma série de debates específicos segundo as posições de cada interveniente. Este ponto é complexo e merece análises específicas que não são o objeto deste artigo.
Sobre el autor
Marcos Benedetti, es antropólogo. Atualmente trabalha como assessor técnico da Pathfinder International em Moçambique e do UNFPA Moçambique, onde desenvolve programas de prevenção ao HIV voltados para homossexuais, profissionais do sexo e prisioneiros. E-mail: marcosbenedetti@hotmail.com