Um oásis erótico? Internet, masculinidade e homossexualidade
¿O que atualmente caracteriza a internet enquanto espaço de sociabilidade, tomando sua interface com as construções de masculinidade e homossexualidade? Esta pergunta me provoca inquietações há pelo menos treze anos, desde quando eu mesmo usei a rede mundial de computadores pela primeira vez como meio de socialização através do qual eu pude conhecer outros homens gays nas salas de bate-papo online.
Não há uma resposta correta para a questão que acabo de colocar, sem dúvida, mas aqui eu escolho desenvolver brevemente o argumento de que a rede mundial de computadores, tomada como mais um espaço de sociabilidade, dá condições para que novas experiências e significados relacionados ao corpo, à masculinidade e à homossexualidade sejam vividas por seus usuários. A problematização da rede mundial de computadores só se tornou possível depois que a internet surgiu como uma questão social relevante, sobretudo a partir de meados dos anos 1990 com sua popularização nos países ocidentais, sendo um artefato cultural caracterizado pela fluidez e provisoriedade de seus usos. Podemos dizer que é a sociedade contemporânea, os próprios usuários da internet, que vêm ‘causando impactos’ nos usos desta tecnologia; são os internautas que movimentam as informações dentro da rede, criam novos blogs a cada dia sobre os mais variados assuntos, acessam sítios de relacionamento, salas de bate-papo; são os usuários que se apoderam das possibilidades técnicas da internet e mudam suas culturas. São eles que produzem a internet como hoje nós a conhecemos, que a investem de sentido, que a constroem e a ressignificam. Portanto, é a intensa negociação entre sociedade, técnica e sujeitos da cultura que vai produzir os significados da internet atualmente.
Nesse sentido, é importante ter uma apreensão ecológica da internet ao pensar a rede mundial de computadores como mais um meio-ambiente entre os vários outros espaços de sociabilidade já existentes, e não como um espaço existente per se, em separado, que exigiria um esforço epistemológico em explicar suas características intrínsecas. Numa opção ecológica, analisaremos a internet como um meio-ambiente (tal quais os clubes de sexo, saunas gays, os parques públicos, bares e boates); numa opção ontológica, veremos a internet como uma nova natureza dotada de uma nova cultura de especificidades e idiossincrasias que pediriam por métodos particulares para sua compreensão. Opto aqui por uma análise ecológica da web.
Assim, aquilo que é dito e feito online não surge ali como uma criação nova, inaugural e inédita. Dizer de si, ou seja, narrar a si mesmo e dar informações sobre si como parte de estratégias na busca de parceiros, são práticas que já existiam antes do advento e difusão da internet, como por exemplo, nos diários pessoais, nas trocas epistolares, nas biografias e até mesmo em anúncios classificados de jornais e revistas de outras épocas. As novidades da internet estão no domínio e no aproveitamento dos recursos tecnológicos que ela proporciona, na rapidez e instantaneidade do começo – e do fim – das relações entre os internautas, na maneira como os sujeitos se apresentam online, nas possibilidades dos ângulos fotográficos e na linguagem dos vídeos; sobretudo, a novidade da web está investida nos usos e nos significados atribuídos pelos internautas a ela. É internet, por isso, é mais um – entre vários – ambientes de sociabilidade produzidos pela nossa cultura.
“A internet tem se tornado um espaço de mercado sexual que de algumas maneiras é o equivalente aos bares gays e aos lugares de flerte [entre homens]”, dizem Ross, Tikkannen e Mansson, “como uma entrada para um ‘oasis erótico’, assim como a realidade virtual de ‘oasis erótico’ em si mesma, ela contém muitas características dos espaços tradicionais para contatos homossociais e homossexuais enquanto agrega algumas outras mais” (ROSS et al, 2000, p. 750). Partindo de uma apreensão ecológica da internet, ou seja, entendendo-a como mais um ambiente, e entre outros que já existem, de sociabilidade entre homens que fazem sexo com outros homens ou homens gays, a web se constitui como um espaço de criação de redes de contato em que as práticas sexuais, os corpos, as masculinidades e as sexualidades adquirem centralidade na construção de vínculos entre os sujeitos.
Nessa perspectiva, entendo também que os modos de sociabilidade, de estabelecimento de vínculos, de produção e representação de si através de formas que façam sentido dentro deste lugar específico, apresentam diferenciações. Estar sentado num cinema pornô gay pede por comportamentos diferenciados do estar sentado num bar gay com mesas ao ar livre, que por sua vez pede por modos de sociabilidade diferenciados do estar dançando numa boate gay de madrugada: esses três espaços exemplificam regiões morais distintas nas quais os sujeitos têm comportamentos diferentes porque lhes são dadas condições e possibilidades também diferentes nos modos de estar e ser homem gay. Trocar mensagens instantâneas através de um sítio de relacionamentos na internet, corresponder-se por e-mail ou conversar online com outros internautas em uma sala de bate-papo constituem zonas morais distintas e não excludentes.
As novas possibilidades de criação de novos espaços de sociabilidade para homens gays e de adesão do público aos novos espaços podem ser consideradas como o próprio efeito da visibilidade da homossexualidade experimentada na década de 80 pela mobilização política engendrada pelos movimentos sociais. Se num momento histórico os espaços de sociabilidade dos homens gays estavam de alguma maneira espalhados geograficamente, incorporados e mimetizados à tessitura da vida das grandes cidades, como vários autores já assinalaram em relação às décadas de 1970 e 1980, logo em seguida esses espaços se vêem inseridos em um mercado de sociabilidade, fixados e institucionalizados, endereçados para um público específico, como nas recentes décadas de 1990 e 2000. Se num período os próprios indivíduos que buscavam conhecer pessoas do mesmo sexo criavam suas regiões de socialização nos interstícios da vida urbana – como em parques públicos, ruas específicas e passeios –, atualmente os homens gays são chamados por esses espaços de sociabilidade, são interpelados como público-alvo dos estabelecimentos comerciais, estes tidos como locais legítimos para conhecer outros homens gays. A internet se coloca aí como mais um desses locais que fazem parte de um circuito institucionalizado de sociabilidade mercantilizada para homens gays.
É usando o computador conectado à rede que eles criam vínculos com outros usuários; é usando as ferramentas disponibilizadas para uso na internet que eles produzem seus registros audiovisuais (web cam, câmeras digitais, telefones celulares com câmera). O computador é o meio através do qual lhes são oferecidos espaços e técnicas para socializar informações, desejos, narrativas sobre masculinidades, corpos e sexualidades. Dessa maneira, esses internautas acabam por produzir novas formas de entender a internet ao investir de diferentes significados os usos que fazem dela.
A internet serve, nestes casos, como espaço de sociabilidade online em que se podem conhecer parceiros para prática sexuais. Isso significa que os contatos originados na e através da internet não podem ou não devem ficar contidos nela, que sejam trazidos deste ambiente online para o ambiente offline, sacando-os do ‘mundo virtual’. Essa desvirtualização das relações é entendida como sendo uma objetividade e rapidez em conhecer pessoalmente os parceiros: a instantaneidade é uma qualidade. Manter relações fora da virtualidade significa usar a web como meio de conhecer outros internautas, mas não como um fim em si mesmo. Ali é talvez o meio mais rápido e mais claro possível para os internautas dizerem de si e para procurarem o que buscam. Mas isso não significa que os contatos oportunizados pela web ficarão contidos nela, antes pelo contrário. A superexposição dos corpos, a grande quantidade de registros audiovisuais e as informações sobre corpo, gênero e sexualidade postas na internet são tão explícitas e objetivas quanto a rapidez e objetividade com que alguns internautas buscam pelo sexo offline. Tirar as relações da internet significa pô-las em prática pessoalmente, significa fazer sexo efetivamente.
Por isso, a ideia de que a internet é mais um lugar de socialização entre homens gays ganha um atravessamento bastante importante: o corpo surge como ferramenta e para a sociabilidade dos internautas. A objetividade e rapidez das relações são acompanhadas de um inflacionado valor dado ao corpo masculino. Serão os corpos de homem e seus elementos constituintes – como o pênis, o abdome e o peitoral – os protagonistas desta sociabilidade fortemente ancorada nas representações corpóreas construídas pelos internautas através da web. Os corpos aparecem como uma informação central para os internautas dizerem de si. Para isso, eles lançam mão de um poderoso e eficiente recorte corporal: o pênis, por exemplo, é a parte que pesa nos corpos, e o pênis será recortado dos corpos através de técnicas de registro de imagens para servir como ferramenta de sociabilidade online. O efeito disto é a genitalização das representações, que produz os corpos como formas legítimas de afirmação da masculinidade e de sexualidade. É o corpo e suas articulações com a masculinidade e a homossexualidade que organiza em torno de si os modos de sociabilidade entre homens gays através da internet.
De certo modo, estamos diante daquilo que Paul Rabinow chamou de biossociabilidade: elege-se uma atribuição ou característica do corpo, algo que lhe é imanente ou que a ele esteja diretamente articulado – como, nesse caso, são os sentidos estritos de masculinidade (o pênis) e a homossexualidade (a prática sexual) – para que em torno desta atribuição e em nome desta característica se construam laços, se produzam socializações entre os indivíduos. Mas o que Rabinow também pontua é que esta sociabilidade, típica da contemporaneidade, é estruturada com fins políticos sensivelmente diferentes daqueles que outrora testemunhamos: os sujeitos se juntam em grupos pautados em características de seus corpos que lhes são comuns com o objetivo de fazer valer suas corporeidades não mais como seres sociais, mas como seres individuais e singulares. Nas biossociabilidades não há um sentimento de pertencimento ao mundo, à sociedade, à cultura, mas sim um sentimento de pertencimento de um corpo, de uma singularidade única, de uma individualidade biocêntrica. Nesse contexto, os usos que vêm sendo feitos da internet como novo espaço de socialização entre homens gays colocam uma questão importante para acadêmicos e militantes: que novos sentidos vêm sendo produzidos para aquilo que chamamos de masculinidade e de homossexualidade? Neste novo paradigma de sociabilidade em que o corpo é o centro do individualismo, em que o corpo serve ao pênis e a sexualidade serve às práticas sexuais, que maneiras de viver as masculinidades e as homossexualidades estão sendo construídas?
Referências
ROSS, Micheal W. TIKKANEN, Rony. MANSSON, Sven-Axel. Differences between Internet samples of men who have sex with men: implications for research and HIV interventions. Social Science & Medicine, nº 51. 2000. p. 749-758.
Sobre el autor
Luiz Felipe Zago, Jornalista (Periodista). Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil. Atualmente é consultor de projetos de prevenção à infecção pelo HIV/Aids entre homens gays e militante do movimento LGBT brasileiro.
Direccion eletrônica: luizfelipezago@gmail.com